15 agosto 2014

Uso do laudo psiquiátrico no caso Pesseghini: a criminalização da criança pela loucura

Publicado originalmente no Desmilitarização da Polícia e da Política do DF, em 9 de julho de 2014.

Criança louca mata família inteira e se mata em seguida. Essa foi a narrativa proposta pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, no início do mês de junho passado, quando pediu o arquivamento do inquérito sobre a morte da família Pesseghini, ocorrida em 5 de agosto de 2013. Uma das principais provas elencadas no inquérito para apontar Marcelo, de 13 anos, como autor dos crimes é o laudo psiquiátrico póstumo do menino: nele, Marcelo é comparado a Dom Quixote, pois em seu inconsciente “a imaginação e a realidade se misturam morbidamente”. Apontado como portador de “delírio encapsulado” devido a uma “encefalopatia” causada por falta de oxigenação no cérebro, Marcelo teria sido influenciado por jogos de computador para matar a tiros seu pai e mãe – ambos policiais –, avó e tia-avó e depois se suicidar.
Apesar da versão mais noticiada do caso responsabilizar o garoto pelas cinco mortes desde o início das investigações, as controvérsias que rondam o crime são variadas. Entre o assassinato dos familiares durante a noite e seu suposto suicídio, Marcelo teria dirigido o carro da mãe até a escola, dormido dentro do veículo e comparecido à aula na manhã do dia seguinte. Retornaria depois de carona à casa, onde se mataria. Segundo seus avós paternos, Marcelo não sabia atirar nem dirigir, e tinha uma relação amorosa e tranquila com toda a família. Era uma criança pequena e, sendo ainda portador de fibrose cística, dificilmente teria a força e destreza necessárias para atirar na cabeça de quatro adultos com precisão, sem ser por eles contido – especialmente considerando que seus pais eram policiais experientes. Os parentes ainda sustentam que as hipóteses de vingança ou queima de arquivo não foram suficientemente exploradas. Por isso, contrataram advogada especialista em perícias para contestar a versão da polícia e, em 5 de junho, conseguiram que o inquérito não fosse arquivado como pedido pelo MPSP, mas remetido à vara da Infância e Juventude de São Paulo para novas diligências.
Para além dos embates entre teses investigativas, uma questão se coloca: mesmo que Marcelo seja culpado, a utilização do exame psiquiátrico como prova conclusiva permite que se julgue outra coisa, que não o crime. O exame aponta que o “quadro de delírios” de Marcelo teria se agravado em 2013, quando ele teria passado a dizer que queria se tornar um “justiceiro”, um “matador de aluguel de corruptos”, inspirado no jogo “Assassin’s Creed”. Marcelo teria trocado sua foto de perfil em uma rede social por imagem de personagem do jogo um mês antes da morte da família. Em outras fotos, aparece usando um gorro que seria semelhante ao de outro personagem do mesmo jogo. Nenhuma dessas condutas é, obviamente, um crime. Tampouco têm qualquer relação com a morte da família, mas ainda assim são consideradas evidências relevantes para o processo penal em curso. Enunciar essas características como determinantes sobre quem é Marcelo no contexto de uma investigação criminal opera um deslocamento sobre o que se julga: já não se trata de investigar o delito, mas de analisar o ser que supostamente o comete. Sendo uma criança, o dobramento que se faz entre o crime e o sujeito é ainda mais perverso. Suas condutas, gostos e desejos são reprovados moralmente – como se adulto fosse – e se colam ao crime: Marcelo não é só a criança que morreu, Marcelo é a criança suspeita, de personalidade perigosa e delirante.
Um laudo psiquiátrico não tem por função concluir sobre a autoria de crimes. No Código Penal, o exame de sanidade mental é previsto para a avaliação da imputabilidade, ou seja: para aferir o grau de compreensão da ilicitude do ato que o sujeito poderia ter, em face de possíveis transtornos mentais. Assim sendo, tal exame só faz sentido se já se concluiu que o sujeito cometeu um ato criminoso, já que é preciso a existência de um delito e de um agente que o causou para questionar se é possível puni-lo. No caso da família Pesseghini, o laudo é posicionado de outra forma: opera para criar o nexo causal entre Marcelo e as mortes, para pôr em evidência aquilo que, na personalidade do menino, já seriam as condições de possibilidade de um crime futuro. Como se pôde fazer um laudo de uma criança morta, para chegar até essa conclusão? O exame se baseia no resgate de eventos aleatórios da vida para provar a perversão de um menino que já não está. Ao final, o exame psiquiátrico afirma que Marcelo já se parecia com seu crime antes de cometê-lo.
O fato de que um julgamento como esse seja possível diz algo sobre o funcionamento do poder punitivo: para reforçar sua legitimidade, o poder judicial recorre a um discurso de verdade com estatuto de cientificidade – a psiquiatria – para demonstrar uma loucura punível, que no entanto é mais uma avaliação moral do sujeito como anormal que outra coisa. O exame psiquiátrico é a tecnologia de saber-poder que permite essa produção da anormalidade, a qual será posta em evidência diante do crime. Marcelo pode ou não ter apertado o gatilho da arma que matou sua família e a si, mas isso já não é uma questão para o poder: é uma criança louca, e por isso culpada.

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